Soluções instantâneas para anestesiar o mal-estar não resolvem o problema (Foto/MMD Creative/Shutterstock)
Nos últimos meses, temas aparentemente desconexos vêm chamando atenção: a popularidade dos bebês reborn, o uso de chupetas por adultos, a adultização precoce de crianças nas redes sociais e até relatos de psicoses desencadeadas por interações com inteligências artificiais. Embora distintos, esses fenômenos compartilham um fio invisível: a dificuldade crescente da sociedade em lidar com frustrações e elaborar o sofrimento.
“Vivemos em um contexto de imediatismo, em que tudo precisa ser rápido, descartável e sem incômodo. Estamos inseridos em uma cultura em que o sofrimento, a dor, a espera e a elaboração interna são vistos como falhas, enquanto o mercado oferece soluções instantâneas para anestesiar o mal-estar”, afirma a psicóloga Laís Mutuberria, especialista em saúde mental.
A infantilização dos adultos
Segundo Laís Mutuberria, a busca por atalhos emocionais aparece em diferentes formas. O bebê reborn, por exemplo, pode funcionar como um substituto simbólico de um vínculo materno idealizado: um bebê perfeito, que nunca chora ou desagrada. Já a chupeta em adultos surge como um objeto regressivo, usado para aplacar a ansiedade de forma imediata.
“Esses comportamentos revelam uma regressão defensiva diante da vida adulta, como se houvesse uma recusa em enfrentar a frustração que é inevitável à vida. Em vez do confronto com o real, cria-se um simulacro controlado, sem risco de rejeição ou conflito”, explica.
Adultização de crianças nas redes sociais
A adultização das crianças e sua exposição precoce às redes sociais representam outra faceta desse mesmo dilema. Pais e responsáveis, muitas vezes em busca de que a criança fique quieta, permitem o excesso de tela, acessos a jogos e redes sociais. Outros, em busca de aprovação, visibilidade ou lucros financeiros rápidos, expõem seus filhos a conteúdos e interações que não correspondem ao seu estágio de desenvolvimento, transformando os filhos em personagens digitais.
“Isso compromete a construção da identidade e expõe crianças a abusos e comparações nocivas. Ao invés de viverem uma infância protegida, elas passam a lidar com pressões e expectativas que pertencem ao mundo adulto”, alerta a psicóloga.
Psicoses e a ausência de limites da IA
Outro fenômeno recente é a ocorrência de psicoses associadas ao uso intensivo de ferramentas de inteligência artificial (IA). Laís Mutuberria esclarece que a IA, por si só, não cria transtornos, mas pode funcionar como gatilho em pessoas predispostas.
“O risco está na ausência de fricção. Ao contrário do encontro humano, que envolve diferença e limite, a IA é programada para agradar, reforçar e devolver respostas complacentes. Isso pode intensificar fragilidades psíquicas e, em casos mais graves, levar a delírios e rupturas com a realidade”, explica.
Imediatismo como raiz do problema
Para a psicóloga, o traço comum entre todos esses fenômenos é o imediatismo: buscar o alívio rápido, seja em um bebê que não existe, em uma chupeta, na exposição digital de uma criança ou em uma IA que jamais contraria. “É uma lógica de atalhos emocionais que aliviam momentaneamente, mas empobrecem a experiência humana em longo prazo”, avalia.
Crise da alteridade
Do ponto de vista mais amplo, Laís Mutuberria aponta que esses comportamentos revelam uma crise da alteridade. “O outro, seja a criança, o parceiro, o colega ou até o limite da realidade, tornou-se insuportável. Criamos objetos e tecnologias que apenas devolvem a nós mesmos um reflexo idealizado, sem espaço para o desacordo e para a diferença”, afirma.
A psicóloga alerta que esse movimento não surge no vazio, mas em um contexto de aceleração digital e mercantilização das experiências mais íntimas. “O mercado oferece desde chupetas estilizadas até IA com perfis afetivos. O perigo é transformar necessidades emocionais em consumo, sem elaborar a dor que as originou”, ressalta.
Para onde estamos caminhando?
A reflexão que emerge desses fenômenos, segundo Laís Mutuberria, é urgente. “Ao tentar fugir do sofrimento, não estaríamos criando novas formas de adoecimento? Como resgatar o valor do tempo, da frustração e do encontro real em uma cultura que oferece anestesias instantâneas?”, questiona.
Fonte: O Tempo.