ARTICULISTAS

A linguagem e o saber

Marcos Bilharinho
Publicado em 03/07/2024 às 19:12
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Não é raro ouvirmos, vez ou outra, anunciarem o fim da literatura ou aqueles menos catastróficos dizerem ser o fim do romance, romance no sentido de peça de ficção de fôlego.

Contudo, o que se assiste é justamente o contrário, pois a proliferação de livros de narrativa longa tem demonstrado expansão.

Para comprovar tal assertiva, basta se atentar para o verdadeiro boom editorial de romances escritos em língua inglesa, que, tanto em razão do número de obras editadas quanto de qualidade estética e da ressonância global, vem, positivamente, inundando esse setor.

Tanto isso é verdade que podemos citar como exemplos o imenso número de autores norte-americanos que, mais que a produção de uma potência global, atinge os lindes de verdadeira quantidade continental com o surgimento de autores como Don Delilo, Philip Roth, Cormac McCarthy, Paula Fox, Toni Morrison, Thomas Pychon, William Faulkner, Michael Cunnigham, John Updike, Jonathan Franzen, Jeffrey Eugenides e outros, sendo a grande maioria relativa apenas à segunda metade do século XX, que se constituem em estrelas de primeira grandeza na constelação literária.

Em outros países de língua inglesa, o fenômeno não é diferente, podendo-se mencionar nomes como Nadiner Gordimer e J.M. Coetzee (sul-africanos), Margaret Atwood (canadense), Martin Amis e Ian McEwan (ingleses), Peter Carey (australiano), V.S. Naipaul (indiano), etc.

Na literatura hispânica ocorre o mesmo, com o surgimento de monstros sagrados como Juan Carlos Onetti (uruguaio), Gabriel Garcia Marquez (colombiano), Mario Vargas Llosa (peruano), Roberto Bolaño (chileno), Jorge Luís Borges e Julio Cortazar (argentinos), Roa Bastos (paraguaio), Miguel Angelo Astúrias (guatemalteco), Carlos Fuentes e Juan Rulfo (mexicanos), Cabrera Infante e Lezama Lima (cubanos) e outros.

A literatura portuguesa, se perde em número, iguala-se na qualidade com autores da estatura de Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Mia Couto (moçambicano), Pepetela (angolano), Antônio Lobo Antunes e José Saramago (portugueses).

Se persistíssemos, a lista seria quase que interminável, o que demonstra a vitalidade do gênero que, ao revés do que se diz, vem se ampliando, tanto na quantidade quanto na qualidade.

A exemplo da oferta de excelentes livros, acompanha tal fato o crescimento do número de leitores, ampliando, assim, o topo da pirâmide.

Entretanto, seria ilusão pensar que, pelo menos a curto e médio prazos, a alta literatura deixará de ser restrita a uma elite intelectual, o que não deve retirar os efeitos benéficos deste fenômeno.

Talvez a maior barreira ao crescimento do acesso à cultura de alto nível, o que engloba a literatura no sentido geral, ou seja, contos, poemas, novelas, peças de teatro e o romance, é o excesso de entretenimento que, ao invés de informar e formar, desinforma e deforma a aquisição de cultura.

É o oposto do que se deu na Idade Média, por exemplo, onde as elites dominantes, para terem o monopólio da cultura, só a veiculavam em latim, língua inacessível ao cidadão comum.

O começo tímido dessa ruptura se deu com Dante (1265-1321), com a publicação de “A Divina Comédia”, em italiano e a consequente ascensão das denominadas línguas vulgares, que tornaram o conhecimento e a cultura um pouco mais acessíveis às pessoas comuns, podendo citar Geoffrey Chaucer (1340-1400), na língua inglesa, especialmente com “Os Contos de Canterbury”, séculos depois; Voltaire (1694-1778), com a publicação do “Dicionário Filosófico” em francês.

Outro fato que trouxe mudança qualitativa fundamental na disseminação do acesso ao saber foi a impressão por tipos móveis, de Johannes Gutemberg, que deu início ao surgimento da imprensa e que tornou fisicamente viável se editar livros em grande escala.

Cabe fazer-se um parêntese para se destacar o papel da linguagem, que possibilitou ao homem, isto é, aos nossos ancestrais remotos, se destacarem e evoluírem de maneira logarítmica em relação aos outros animais. Ressalte-se que a linguagem não se restringe à escrita, já que esta é inerente a todas as demais formas de arte e de comunicação, que se desdobram na linguagem pictórica (pintura), corporal (dança), cinematográfica e musical.

Mas, até por questão de espaço e conhecimento, nós nos restringimos a destacar a linguagem literária que, em certo aspecto e a grosso modo, constitui-se em pré-requisito ao domínio e aprimoramento das demais.

Destaque-se, ainda, que a arte amplia os horizontes que o conhecimento técnico, strictu sensu, não alcança, o que o confirma o velho adágio que ensina que, muitas das vezes, para solucionar determinado problema, “mais vale a arte que a ciência”, sem que, contudo, uma exclua a outra, muito ao revés.

A conjugação entre inteligência orgânica e conhecimento resulta em combinação explosiva, pois, como dizia Sartre: “o gênio não nasce, faz-se”, pois, enquanto a ignorância restringe, a cultura amplia a capacidade pessoal de qualquer um.

Para se manter a ignorância das massas e a própria escravidão, era proibido ao servo de gleba aprender a ler e escrever, ocorrendo o mesmo com os escravos, que, até mesmo nos Estados Unidos, antes da Guerra de Secessão, também não podiam se alfabetizar, já que, como se sabe, o acesso ao conhecimento é o primeiro passo para a libertação.

Os grandes líderes mundiais, ao contrário do que se divulga, foram, preponderantemente, homens dotados de enorme sofisticação intelectual adquirida pela leitura, como o atesta Júlio César, a quem se atribui o domínio do conhecimento de praticamente todo o acervo cultural e literário produzido pelos gregos e romanos até a sua época. Não foram, pois, apenas atributos orgânicos que permitiram ao grande líder se tornar gênio e ao mesmo tempo militar, político, administrativo e literário (neste caso ao escrever “De Bello Galico”), mas a enorme bagagem cultural que adquiriu.

O mesmo se deu com Alexandre Magno, rei da Macedônia, que o antecedeu, e que teve, nada mais nada menos como seu preceptor o filósofo Aristóteles, o que dispensa tecer maiores considerações.

A história é farta em nos fornecer outros nomes, tais como Abraham Lincoln, Thomas Jefferson, Winston Churchill, Bismarck, etc.

Um mais recente, e surpreendente, é o caso do ex-presidente Bill Clinton, que impressionou, num encontro ocorrido em Camp David, os já mencionados escritores Garcia Marques, Carlos Fuentes e Vargas Llosa, com seu enorme conhecimento literário.

Em relação aos grandes líderes mundiais, a lista também seria interminável, mas o que se quer demonstrar é que o conhecimento (que só se potencializa com a leitura e com a capacidade intelectual) é verdadeira forma que se tem de domínio e libertação, isto é, muitos que o adquirem procuram monopolizá-lo para se prevalecer sobre os demais de maneira sibilina, indireta e imperceptível.

Por isso, o acesso à formação, que não se confunde com a mera informação fragmentada e descontextualizada, deve ser perseguido por todos e difundido por meio da educação de qualidade no mais alto grau da acepção da palavra.

Aliás, só a partir do conhecimento verdadeiro é que se consegue entender e processar corretamente as informações e, ao contrário do ocorrido na paradigmática idade das trevas, onde o saber era mantido no escuro, atualmente ele é ocultado de forma oposta por meio da ofuscação resultante da indústria do entretenimento.

 Marcos Bilharinho

Advogado e escritor

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