“Sua excelência, o fato”, dizia Ulysses Guimarães ao se referir à incontestabilidade do fato.
O que é um argumento diante de um fato? Perda de tempo.
Foi em um dia chuvoso daqueles que já nascem úmidos e não permitem a entrada do sol. O cortejo fúnebre conduzia ao cemitério o corpo do morador mais ilustre do vilarejo.
A chuva insistente tocava o ritmo gotejante, dando o tom à marcha com réquiem embalado pelo trinado das gotas d’água que pipocavam em cima dos guarda-chuvas e das sombrinhas.
A ladainha recorrente rangia junto com a roda do carro de boi, que cumpria o papel de rabecão, onde o caixão se acomodava quase por inteiro na mesa onde vai a carga.
As carpideiras alternavam com as carolas, ora lágrimas, ora ave-marias, e o féretro seguia no balanço do molejo do carro de boi, cujo séquito engrossava com adesões pelo caminho.
O defunto, o corpo, o morto, tudo junto em um só, que já não mais respondia por si, sendo guiado por tantas e tantos que em prantos queriam apenas um momento único de despedida com o falecido.
A notícia de sua morte colheu de surpresa e tristeza, mas também com muita perplexidade, o povo da comunidade. Motivo torpe, que deixou quase toda a população incrédula, em se tratando de quem era a vítima. Uma barbaridade. Um desfecho que não se encaixava com a personalidade e nem com a imagem que o falecido transmitia quando vivo.
O capelão acabara de chegar da cidade para as orações e lamúrias na descida do caixão à cova. Sua chegada era como que a derradeira sentença. Nada mais definitivo que a morte. Nada mais concreto e real que o momento final.
O caixão veio lacrado, posto que as circunstâncias do ocorrido e a desconfiguração do cadáver recomendavam o lacre. Permaneceu assim no velório e por todo o trajeto em direção ao cemitério.
A curiosidade tomou conta dos presentes. Não se conformavam em não o ver pela última vez. Diante de tantos apelos e de manifestações que poderiam ocasionar tumulto e descontrole, gerando um verdadeiro caos, familiares resolveram deslacrar a urna temendo o pior.
Um dos integrantes da família se dirigiu ao público para informar a decisão e organizar a fila para que todos pudessem ver o morto e dar seu último adeus.
Foi então que o diabo deu as caras, entrou em cena. Ao se abrir a caixa mortuária, não havia morto dentro. Não tinha cadáver, não tinha corpo, não tinha morto.
Ninguém havia dado conta da ausência do finado porque o caixão pesava como se defunto lá houvesse. A sensação fora simulada com blocos de pedras ciclópicas, bem encaixadas, para o peso ficar compatível ao do morto.
Não restava dúvida, tratava-se de um ou mais crimes. Faltava o morto. Ele estaria vivo? Se vivo, era culpado ou inocente? E a funerária da cidade? Quem trouxe o corpo até o lugarejo? Quem tramou? Quem é vítima, quem é vilão?
O alvoroço se fez, tomou conta do pequeno cemitério. O que era aquilo? Onde estava o falecido? Teria sido morto mesmo, ou era uma armação? A família, atônita, entrou em desespero. Outros tantos gritavam: milagre! Boa parte se sentiu enganada. E outra fatia nada entendia.
O que era fato ali? Até antes de o caixão se abrir era um velório com enterro, com caixão e um corpo dentro. O que se viu: um morto que não veio ao seu sepultamento.
A breve viúva, sem defunto, retornou à posição de esposa até que tudo fosse esclarecido. A viuvez interrompida e o marido dado como morto. Uma condição social sem definição. Viúva de marido vivo ou esposa de marido morto?
Isolaram a cena, bloqueou-se com troncos e galhos a saída do distrito. O próprio capelão ficou impedido de retornar à capela até que o efetivo da polícia chegasse. Efetivo, diga-se, um soldado de muito boa vontade, mas inepto, pelas condições de trabalho, para tratar de tão intrincado delito.
A morte estava suspensa, passou do fato para opinião. De opinião para boato. Fato morto. O caso, de comoção geral, virou assunto policial.
Passaram-se anos do enterro que não houve, do óbito que não foi atestado, da morte que não se sabe, do cadáver que não apareceu ou do vivo que não retornou e nada se esclareceu.
Aquele povoado nunca mais foi o mesmo com a morte de tantos fatos naquele dia fatal. Povo farto de boato à procura do fato perdido no tempo e vivo na memória.
Sua excelência, o fato que morreu antes do crime.
Luiz Cláudio